sexta-feira, março 26, 2010

Ode



Quisesse eu falar da Miquelina e escreveria o mais longo texto do mundo.

Fez parte da minha vida por trinta e um anos. Sou um sortudo por a ter tido comigo tanto tempo. Sou, aliás, um sortudo por ter tido avós até à minha idade adulta e por isso ter aprendido coisas com eles. Coisas que mais ninguém me poderia ensinar.



Vivi na mesma casa que a Miquelina 17 anos. Deu-me banho, tratou de mim quando estava doente, rimos juntos, limpei-lhe a casa por vezes, chorei por causa dela, deu-me muitos pequenos almoços, deu-me muito beijinhos. Por isto e por muitas outras coisas, é difícil e quase surreal dizer-lhe adeus.

Bem sei que ela estará sempre comigo. Porque de outra forma não poderá ser, mas acho que ainda não me convenci que ela se foi mesmo. Que é o seu corpo frio que está numa cave velha de uma igreja.

Não terei mais histórias fantásticas para contar. Histórias de uma velha caquética, como eu lhe chamava, que apesar de tudo tinha sempre respostas na ponta da língua. E que tinha o cabelo mais lindo do mundo.

Mesmo ali, fria, já a beijei, já olhei para ela, já lhe fiz mais festas. Porque ela, sem ter sido sempre uma pessoal fácil de aturar, é, como já disse tantas e tantas vezes, parte de mim. Porque a amo como a ninguém.

Ela ensinou-me tantas coisas. Ela tinha dizeres que não ouvia de ninguém.



Ontem, lá no velório, eu e a minha prima lembrámo-nos de histórias dela. De como insistia em ir às compras a um determinado sítio e voltar a casa. Depois outro sítio e casa. E eu sempre a perguntar-lhe porque não fazia tudo de seguida que seria mais fácil. Ou de ela se perguntar, lá por causa das dietas delas, que vou fazer para cima do jantar? Ou como ela insistia em dizer caí uma queda, apesar de eu lhe dizer que isso era uma redundância.

Tinha uma letra maravilhosa. Toda curvilínia, bem à antiga. Chegou a escrever-me quando estava na Suécia, mas já não o fez tanto para o Japão. Porque já tremia e aquilo não lhe saía bem. A última vez que escreveu foi lá no lar, porque a fiz escrever que ía a Belém aquela semana. Para não se esquecer. E não deu erros. Porque nunca dava.

Sabia a história de Portugal de trás para a frente e nunca percebeu porquê que eu não a sabia. Tantas vezes que lhe disse que nós aprendíamos a perspectiva mundial da coisa, o que até era fundamental para que se entendesse o que se passava aqui. Nunca a convenci disso.

Era a minha Leleta. Eu o seu Churubeco. E era assim que ela me acordava de manhã. Para eu me despachar, para ir para a escola. E tantas vezes que ela me ía lá levar e buscar.
Só de pensar que nunca mais a poderei chamar assim, como já não fazia há anos e anos, deixa-me de lágrimas nos olhos. Mas o que me vale é que poderei sempre recordar os nossos momentos.

Tanta música, daquela antiga, conheci por causa dela. O Tony de Matos e o António Severino, por alguma razão, são nomes que estão dentro da minha cabeça. E não tenho pejo nenhum em dizer que gosto de os ouvir.
Por alguma razão, a Montanha Azul é a nossa música. Minha e dela.


Foi difícil, como escrevi aqui, vê-la incapaz de falar. Vê-la abrir e fechar os olhos num esforço inglório para comunicar comigo. Ou abrir a boca para tentar dizer mais uma vez que tinha sede. Mas pensei sempre que ela iria conseguir ultrapassar isto. Porque ela sempre fora teimosa e não seria desta vez que não o seria...
Mas o seu coraçãozito traíu-a e parou de bater às três da manhã. Por cansaço, digo eu. Morreu calmamente no sono.

É curioso porque toda a minha vida ouvi que ela estava para morrer, que tinha este e aquele problema. E eu já lhe dizia que não acreditava nela, que ela nunca iria morrer.
Estava enganado.

No último dia que a vi ainda viva, perguntei-lhe se queria água e ela lá abanou a cabecita ligeiramente. Se tinha fome e também o fez. Se eu era giro e ela não me disse nada.
Porque eu e ela estávamos sempre nisto. Porque eu dizia e fazia o que fosse e ela alinhava na coisa. Sobretudo ultimamente. E porque eu acho, muito sinceramente, que há que manter o espírito em alta, que as fatalidades da vida já são sombrias o suficiente.

Tanta coisa que poderia escrever aqui. De como me soube a ouro o abraço que ela me deu quando cheguei do Japão ou os últimos beijinhos, ainda que sumidos, que me deu. Ou aquela vez em que ela me acordou porque pensava que tinha estragado as janelas novas da marquise, quando afinal só as tinha desencaixado. Ou de todas aquelas vezes em que havia trovoada e ela tapava logo os espelhos em casa e uma vez até me acordou logo de manhã com os seu braços em volta de mim, porque a trovoada era grande e ela tinha muito medo. Ou uma vez que a deixei presa na cozinha porque as Jeovás foram lá à porta e ela me tinha dito para lhes dizer que não estava. Mas eu que gosto de falar com essa gente, falei, falei, falei, e a Miquelina ficou dentro da cozinha uma hora. Quando saíu estava furiosa comigo.
E eu picava-a. Ela que não falava ao irmão mais velho há uns 50 anos e eu a dizer-lhe para ir ao Perdoa-me pedir desculpa e ela doida comigo e dizer que jamais o faria, porque ele é que tinha errado.

E as vezes que a apanhava a falar sózinha, ainda nova, e ela negava!?

Estava sempre preocupada com o que havia de fazer para eu comer, porque eu era um esquisito. Tantas vezes lhe disse que não sabia o que queria para o almoo, que não havia ainda tomado o pequeno almoço...

Lembro-me de ser pequenino e de mal lhe chegar ao peito. Ela era grande para mim. Por último, ganhei-lhe a corrida, que ela já estava toda encaracolada e minúscula. Mas foi sempre a Miquelina.



Não vou escrever mais, porque parte da Miquelina é, também ela, o que não se contará. Aquilo que não é tangível, mas está aqui. E digo que tive um grande prazer em poder partilhá-la com o mundo porque ela foi uma boa pessoa. Ainda ontem me dizia uma grande amiga dela lá dos Açores.

Não posso terminar sem deixar aqui um grande beijo e um abraço ainda maior a todos aqueles que me ligaram, mensajaram, facebookaram e, claro, a todos aqueles que passaram lá pelo velório mas, sobretudo, aqueles que fizeram a Miquelina feliz por fazerem parte da vida dela. Porque ela gostava disso!


16 comentários:

Anónimo disse...

Foi de lágrimas nos olhos que li o teu post da Miquelina… És um sortudo por teres uma Miquelina na tua vida! :) Isto dito de quem nunca conheceu os avós…ou não teve grande contacto com a única que conheci!
Ela era isso tudo e muito mais! E tu és essa pessoa maravilhosa e muito mais, graças a ela! Ontem no velório estávamos à conversa…nós 3…”lá da rua” e por pequena a conversa que tenha sido…só foi possível por existir uma pessoa maravilhosa chamada Miquelina.
Um beijinho grande para ti Amigo, que tenhas muita força neste dia…e nos que se vão seguir! E não te esqueças que ela estará sempre contigo…mas tu sabes disso!
Beijinho, Inês

Nádia disse...

Eu tive uma miquelina na minha vida... Olha este post levou-me à morte da minha avó, descreves o amor quase impossivel de descrever. Aquele que se sente num abraço que a tua e a minha avó nos davam.

Acredita ela está olhar por ti ... estão as duas :)

João Roque disse...

A vida continua, meu amigo, e ela decerto gostaria que tu tivesses a força que decerto terás para a continuar a viver com a tua tão natural vivacidade.
Abraço.

Unknown disse...

Amigo, como tu dizes e a Inês também, és um sortudo!
Acho que passei mais tempo com a tua Miquelina do que com os meus próprios avós. Também me lembro de alguns episódios dela, de quando passava tardes inteiras na tua casa ou nas tuas escadas. Vocês tinham uma relação muito engraçada, de se picarem, tu conseguias mesmo arreliar a Miquelina! :)
Ela tinha muito orgulho em ti, assim como tu tens dela. Sempre que a encontrava na rua e ela falava de ti, os olhos brilhavam!
Tenho muita pena de não ter ido contigo ao lar... mas despedi-me dela, à minha maneira.
Beijo grande e força!
És um grande amigo de infância :))

pintasqb disse...

Só pode ter sido um ser humano e uma avó excepiconal pela forma que criou e educou o neto. Agora, já sem ela, caminharão sempre os dois, porque há marcas que acredito se colam na pele e tenho a firme esperança que, igualmente, se fazem transportar nos genes.

pintasqb disse...

Só pode ter sido um ser humano e uma avó excepiconal pela forma que criou e educou o neto. Agora, já sem ela, caminharão sempre os dois, porque há marcas que acredito se colam na pele e tenho a firme esperança que, igualmente, se fazem transportar nos genes.

Maria disse...

A beautiful ode Angelo!!!! This type of love couldn't be described in a better way. Hang in there!!! I'm sure she'll make sure you do that :) A bear hug :) Maria Coimbra

Sabina disse...

Lindíssima homenagem.

(Força)

Daniel C.da Silva disse...

Como eu disse e felicito-te pela homenagem, que lhe fazes tao bonita pelo post e layout, palmas para a Leleta!

Sabes como conheço a dor. Sei o que digo e como digo.

Long Live Miquelina... E tu continuas o fado de uma criação nobre.

mirror disse...

Tens um coração lindo e grande Angelo, estas palavras saíram directamente dele e mostram a pessoa inteira e humana que tu és... tenho tanto orgulho em te poder ter também na minha vida. Encheste a Miquelina de lágrimas de emoção, de certeza, de onde quer que ela te esteja a ver... Muitos muitos beijinhos Angelo, adoro-te.

Anónimo disse...

Ao ler este teu post, não consegui conter o choro...
Lembrei-me da minha Vózinha e do amor que sinto e sempre sentirei por ela...
Migo sabes que podes contar comigo.
Um beijo e um abraço bem forte.

V. disse...

De lagrimita no olho li a ode, triste mas de coracao quente, com tao lindas palavras, uma linda historia de amor.

Ao mesmo tempo lembro-me que um dia destes sera a vez da minha avo... e cada vez que partilhavas as tuas aventuras com a Miquelina, eu lembrava-me da minha Felicidade, e das nossas peripecias.
Tenho muitas saudades dela, e so espero conseguir fazer-lhe tão feliz quanto tu fazias a tua Miquelina.

Muitos beijinhos

F disse...

Esta será a Miquelina que ficará para sempre contigo. Nunca desaparecerá enquanto te lembrares dela.Um grande abraço F

Cor do Sol disse...

Somos uns sortudos por termos tido avós como a tua Miquelina. Acho que é das coisas que mais me aquece o coração. Nunca passa, mas aprendemos a viver com o melhor que nos deixaram :)

Vanessa disse...

Não chorei ao ler este post, ao contrario da maioria, talvez porque esteja ainda a guardar as minhas lágrimas para quando a "minha Miquelina" vá para outro sítio...sei, contudo, que quando isso acontecer, creio que escrevrei algo do mesmo género.
Adorei esta homenagem, sabia que tinhas de desaguar essa Dor e essa Saudade toda. Faz bem, não faz?
E agora, a Miquelina está num sítio feliz, a pegar o teu "MAC" e a ler para as outras estrelas como ela, o teu lindo texto. E aposto, que está a sorrir para ti.
Beijosss.

Maria disse...

O gosto foi todo meu. Obrigada por me teres dado a conhecer um ser humano tão excepcional e por me teres permitido voltar a ter uma avó, ainda que adoptada unilateralmente.

bjo kiko